O Coração de Ninguém
Antes de começar propriamente este post, gostaria de deixar um aviso:
Este texto contém spoilers de Kingdom Hearts 2.
Acho que todos temos problema de identidade em algum momento da vida, não? Você começa a não se ver mais no seu grupo de amigos, se muda para algum lugar novo e não se encontra lá, ou, simplesmente… perde quem você é.
Eu sempre tive dificuldade em me encaixar. Com exceção do meu irmão, só fui fazer uma amizade de verdade com meus onze anos de idade e, mesmo assim, não era algo tão natural. Eu precisava me esforçar para me conectar aos outros. Mal entendia eu, naquele momento, que precisava ser amiga de mim mesma.
Meu intuito inicial não era fazer um texto sobre descoberta e identidade como mulher trans, mas acho difícil não tocar nesse ponto quando desejo falar sobre Kingdom Hearts. Sim, a série de jogos com chaves gigantes e personagens da Disney.
Me lembro muito bem de como conheci o jogo. Desde criança, quando meus pais se separaram, eu passava os sábados com meu pai e, para agradar a mim e ao meu irmão, ele nos levava para alugar jogos. Toda semana tínhamos dois ou três jogos novos para experimentar e eu, como uma criança que gostava de animações, me encantei com uma caixa na prateleira.
Junto a personagens com cabelos espetados, roupas cheias de ziperes e chaves gigantes estava… Pato Donald? Pateta e até mesmo Mickey na parte de trás? Me parecia um jogo incrível, então o levei, mesmo sem saber que era, na verdade, Kingdom Hearts II.
Se não me engano, já tinha meus doze anos de idade e logo me apaixonei com a abertura do jogo. Uma animação agitada, cheia de personagens, lutas e ao som de J-Pop (minha querida Utada Hikaru), terminando em um tom misterioso e obscuro foram o suficiente para me encantar.
E é aqui, então, que conhecemos Roxas. Se você conhece a série de jogos, talvez esperaria comentários sobre Xion, a garota esquecida, ou Naminé, a garota que vive por desenhos, mas eu me encontrei no garoto loiro, skatista e com comportamento um tanto revoltado. Ele, também, se sentia perdido onde estava.
Sem entrar em muitos detalhes, Roxas é um Nobody, um ser criado quando o coração de alguém forte é tomado pela escuridão. Para sua infelicidade, pelo menos nesse jogo, ele é o Nobody do real protagonista da série, Sora, e, por isso, não poderia estar ali para sempre. Sora precisava de seu coração de volta.
Em uma introdução talvez longa demais, Roxas abre mão de sua própria existência para que Sora possa voltar a viver. É um final um tanto melancólico para o personagem (pelo menos até retornar, em jogos futuros), que ficou comigo por vários anos. Ter que desistir de seu coração, de si mesmo, para os outros, para… um outro você.
Talvez valha a pena falar um dos motivos para não ter amigos quando criança. Eu era um tanto (lê-se: muito) emocionada. Chorava facilmente, grudava em qualquer pessoa que me dava atenção, me apaixonava por desenhos e jogos e… bom, eu cresci como um garoto.
Não eram comportamentos terríveis, mas também não eram muito aceitos. Com o tempo, eu decidi fechar meus sentimentos, meu coração, para que os outros me aceitassem, mas, assim como Roxas, isso não poderia durar para sempre.
Bom, imagino que a conexão dessa história com uma identidade trans está mais do que clara agora, não? Eu ainda sou apaixonada pelo Roxas, sua história e sua música tema, que escuto enquanto escrevo. Deslocada e perdida, eu, também, precisava encontrar a verdadeira eu que abandonei tempos atrás.
Foram muitos, muitos anos de negação, passando por fakes no Orkut, personagens femininas em jogos online, noites confusas regadas a lágrimas e… um escape com amizades de internet. Foi somente em 2013, sete anos depois, que me dei a chance de tentar.
Em um bate-papo online, meu saudoso DrrrChat, conheci um grupo de pessoas que, naquele momento, me deram toda liberdade e oportunidade para explorar quem eu era. Ainda foram mais dois anos até, finalmente, me aceitar, mas não havia mais volta.
É claro, houveram muitas mais influências, tanto de mídias quanto pessoas, tantos detalhes que foram, aos poucos, me levando até onde cheguei, mas foi Kingdom Hearts, com suas boba chave gigante, que abriu a porta inicial da minha auto descoberta. Do meu coração.
Links Relacionados
Olá! Essa sessão no final eu deixo para alguns links que comentei no texto, que li para escrever a newsletter da semana, ou que, simplesmente, tenham relação com o tema!